segunda-feira, 30 de maio de 2011

Quando muito ainda não é o bastante

Quando muito ainda não é o bastante
E as pessoas querem, e querem mais
Eu vejo tudo isso diante dos meus olhos
E tenho certeza que nós falhamos
Quando muito ainda não é o bastante
Pessoas vêm e pessoas vão
Procurando alguma coisa para fechar suas feridas
Algo bonito e novo para curar feridas antigas
Multidões solitárias comprando e gastando e sorrindo
Em bolhas perfumadas e tristes
Quando muito ainda não é o bastante
Escuto as buzinas em desespero
Elas precisam chegar ao serviço
Elas precisam chegar a algum lugar
Mais rápido que eu e você
Como imensos rebanhos com ar-condicionado
Precisam chegar mais longe e mais rápido
Que eu e você
Porque para elas muito
Ainda não é o bastante

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Prego na cabeça

Eu tenho 43 anos
E a única coisa que ingeri hoje
Foi meia garrafa de cachaça
Agradeço esse pedaço de pão
E principalmente você que está me ouvindo
Porque isso é muita compaixão por uma pessoa
Que errou e errou e errou na vida
Fui garçom, um bom garçom
E tenho uma filha de 17 anos
Que não quer me ver, nem quer saber onde eu estou
Mas penso nela todos os dias
– Minha linda filhinha
Errei e errei e errei e matei uma pessoa
E isso, isso é algo que se carrega pelo resto da vida
Como um prego dentro da minha cabeça, que acordo e vou dormir
Sentindo o prego dentro da minha cabeça
Eu sei uma coisa
Eu matei uma pessoa, mas minha alma é limpa
Minha alma é limpa, não desejo o mal para ninguém
Perdi tudo, tudo o que tinha na vida
Perdi minha família, meu emprego, meus dentes
Hoje eu acordo e durmo sujo
Perdi tudo, só o que tenho agora é minha saúde
Bebi meia garrafa de pinga e estou aqui, em pé
Conversando com você
Eu não sou nada,
Eu sei que não sou nada,
Mas tenho uma coisa pra dizer
Chegue em casa hoje, e agradeça sua casa
E olhe para sua mãezinha
E beije sua mãezinha
Não faça o que eu fiz
Não espere tempo demais para amar a vida

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Cemitério dos sonhos

Passo por uma repartição pública
Com seus arquivos cinzas
E os ventiladores ligados
Com suas hélices girando
Vagarosamente
São três da tarde
Um funcionário público assobia
Enquanto mexe em uma pilha de papéis
E um copo de café morno repousa sobre sua mesa
Ele boceja e olha para o relógio
Que acaba de marcar

Três e sete.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Cinza-chumbo

Da janela posso ver
As nuvens se formando
Tomando o azul do céu
Como grandes deusas cinza-chumbo
Lentamente se unindo
Em um só corpo
Trovejando, de tempos em tempos
Seus gritos de anunciação
Do temporal que está por vir

8 anos

Não há Carma, nem Divina Justiça
Que me faça entender
Por que você, doce menina
Dorme sozinha, na rua, ao relento
Um anjo não poderia, não poderia jamais
Fazer, da sua casa,
O asfalto, o cimento
Mas você, triste anjinho
Tem sua sala o cimento
Tem sua mesa o cimento
Tem sua cama o cimento
E entre seu ninho de papelão e de cobertas poídas
Fez seu aniversário em uma calçada suja
Comemorando 8 anos na companhia
Da fome, do frio, do desalento
E eu, em minha pequenez humana
Te abraço, te beijo, e junto ao copo de leite quente
A única coisa que, vergonhosamente
Posso te oferecer nessa noite de inverno,
Rezo em prece silenciosa
Para que seus próximos 8 anos
E mais 8 anos e mais, muito mais que 8 anos
Sejam de despertar
De bater asas, de voar
Ir para longe, muito longe
Desse cimento frio que te acolhe agora
E que vire uma mulher
Digna, forte,
Que desafie os carmas e as justiças divinas
Que desafie as porcentagens e as estatísticas dos jornais
E ainda que com cicatrizes no corpo e na alma
Seja feliz.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

No silêncio de uma noite de verão
Depois que o vento e a chuva se foram
Agora só restam os rastos de luz colorindo o asfalto

Vagueio com meu cigarro
E corro com os olhos, seguindo a fumaça
Que logo mais irá desaparecer

Como os amantes da madrugada
Como as prostitutas nas ruas
Como os carros e os sons
Logo mais, todos irão desaparecer

Ficarão somente as memórias iluminadas
E as lembranças das risadas cortando a noite
Que agora se cala
Porque o sol vermelho já desponta no horizonte